quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Análise crítica e comparativa entre o Sistema Contencioso Português e Angolano

"Contencioso Administrativo Angolano"

A guerra civil de 27 anos causou grandes danos às instituições políticas e sociais de Angola. As condições de vida quotidiana em todo o país e especialmente em Luanda (que tem uma população de cerca de 4 milhões, embora algumas estimativas não oficiais apontem para um número muito superior) espelham o colapso das infra-estruturas administrativas bem como de muitas instituições sociais.

Em Angola existem apenas 150 juízes para uma população estimada em 15 milhões de habitantes, de acordo com dados da Ordem dos Advogados angolana. Existem tribunais só em 12 dos mais de 140 municípios do país. O Supremo Tribunal serve como tribunal de apelação, e o Tribunal Constitucional é o órgão supremo da jurisdição constitucional, que teve a sua Lei Orgânica aprovada pela Lei n.°2/08, de 17 de Junho.

Actualmente, o poder político em Angola está centrado na Presidência e Governo. O ramo executivo do governo é composto pelo presidente José Eduardo dos Santos, pelo primeiro-ministro Paulo Kassoma e pelo Conselho de Ministros.
Relativamente ao seu sistema legal, a Lei Constitucional de 1992 estabelece as linhas gerais da estrutura do governo e enquadra os direitos e deveres dos cidadãos. Este sistema baseia-se no sistema jurídico português e na lei do costume, mas este é caracterizado pela sua fragilidade e fragmentação.

Quanto á actividade Administrativa, a abordagem sobre o processo de reforma administrativa em Angola caracteriza-se inicialmente pelo sistema de organização administrativa durante o período ‘monolítico’, uma fase singular da administração pública marcada pelo facto de não haver distinção clara entre sector público administrativo, sector público empresarial e sector privado. A reforma administrativa Angolana iniciou-se no ano de 1990, mas o primeiro programa de reforma foi aprovado apenas em 2000. Foram precisos 10 anos para a realização de um desejo já antigo.

O grande marco para a justiça Administrativa surge com o período da entrada em vigor da Lei Constitucional vigente na denominada 2ªRepública, pois nesta é introduzida uma inovação que diz respeito ao Princípio da Legalidade. Através deste introduz-se a ideia de que todos os órgãos de Estado e a própria Administração Pública se devem reger pela Legalidade, isto é, pelas normas jurídicas que regem a sua actuação (Art.54º).

É ainda regulamentada uma vasta lista de direitos e interesses legalmente protegidos, como é o caso do DL nº 4ª/96 de 5 de Abril, relativo à regulação do Contencioso Administrativo, vertente de impugnação de actos realizados pela Administração Pública.

Uma das grandes inovações a nível do contencioso administrativo, é a criação de Tribunais Administrativos, com autonomia e estatuto diferentes dos Tribunais Comuns.


Particularidades do Sistema Contencioso Angolano


•São os tribunais comuns que decidem sobre os litígios em que a Administração é parte, por aplicação de normas de direito administrativo;
•Sistema processual é de tipo objectivista: defesa da legalidade e do interesse publico, em que o juiz só pode anular actos ilegais e tem poderes de cognição limitados;
•É um contencioso administrativo de actos – não há contencioso regulamentar e só há parcialmente contencioso de contratos administrativos;
•As acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado são julgadas nos tribunais cíveis;
•A função política e legislativa não é sujeita, a qualquer tipo de impugnação, em sede de contencioso administrativo;
•Os actos políticos, proferidos em processo disciplinar, laboral, fiscal, aduaneira, civil também são inimpugnáveis;
•Os actos administrativos gerados no quadro das relações jurídico-administrativas inter-subjectivistas podem ser apreciados. Mas não os gerados no quadro de relações intra-orgânicas;
•Os juízes fiscalizam, anulam, declaram o acto nulo. Mas não podem condenar na prática a administração à prática de acto devido;
•O recurso contencioso ainda é obrigatoriamente precedido de reclamação ou recurso hierárquico, conforme os casos;
•Existe um Princípio da tipicidade das formas processuais, ou seja, os particulares só podem impugnar de acordo com os meios processuais previstos na lei, notando-se um grande e quase exclusivo contencioso contra actos administrativos;
•Em princípio são as partes interessadas que promovem o processo contencioso administrativo, mas nem sempre é assim, pois por vezes não são as partes em determinadas situações a ter iniciativa processual: isto acontece sempre que em causa está um acto administrativo inconstitucional ou ilegal, cabendo a legitimidade processual apenas ao M.P;
•Os fundamentos da decisão do juiz não têm de se limitar aos factos invocados pelas partes, uma vez que prevalece a verdade material sobre a verdade formal (juiz não pode, contudo, violar o princípio da tipicidade processual e o âmbito do processo, previamente fixado pelo pedido e pela causa de pedir);
•Não se consideram só os factos alegados e provados por uma das partes. O contencioso administrativo não tem como função apreciar se uma ou outra parte tem um direito subjectivo; o que está em causa é a apreciação da conformidade de um acto com a lei;
•A lei processual administrativa angolana só tem em conta a competência material. Mas ainda assim, quando se fala em competência do tribunal, também se fala em competência territorial, em competência em razão da hierarquia e em competência em razão do valor.
•Os tribunais administrativos encontram-se organizados em “Sala do Cível e Administrativo”, “Câmara do Cível e Administrativo” e “Plenário do Tribunal Supremo”;
•É aceite a coligação de demandantes e demandados, mas os requisitos para os primeiros (tribunal competente tem de ser o mesmo em função ou em razão da hierarquia e do território) são menos exigentes que os requisitos para os segundos (fundamentos do recursos contencioso, quer de facto, quer de direito, têm de ser os mesmos, e o tribunal competente para o conhecimento do recurso tem também de ser o mesmo em razão de hierarquia e território);
•Pode intervir nos actos como demandante ou demandado todo aquele que tiver ou demonstrar ter um interesse idêntico à parte com a qual pretende coligar-se. Contudo, apenas é admitido até ao último dia do prazo para a apresentação dos articulados, tendo o assistente um papel subordinado, auxiliar à parte principal, razão pela qual não perturba o normal decurso do processo;
•Não são recorríveis os actos de natureza política;
•A lei angolana estabelece que apenas podem ser impugnados os actos administrativos de carácter definitivo e executório, o que tem como consequência não serem recorríveis os actos que não sejam administrativos, os actos administrativos internos, os actos administrativos não definitivos e não executórios.
.O legslador angolano estabelece a definitividade e a executoriedade como condição de acesso à justiça administrativa, ao invés de estabelecer a definitividade por lesão;
•Também não são recorríveis os actos administrativos que sejam a confirmação de outros;
.Nem os actos administrativos proferidos em processo de natureza disciplinar, laboral, fiscal (não se pode impugnar os actos da Administração Fiscal lesivos dos interesses dos contribuintes) ou aduaneira. Nem os de natureza cível que estejam afectos à jurisdição própria;
•Se a entidade que tem o dever de contestar não o fizer, não há a confissão dos factos deduzidos.
.A falta de contestação não tem como efeito a aceitação dos factos nem do pedido, o que vigora é o princípio da verdade material;
•Após apresentadas as alegações, ou findo o respectivo prazo, vão os autos com vista ao M.P., que vai apreciar os eventuais vícios de que pode enfermar o processo e pronuncia-se pelo provimento ou pela negação do provimento ao recurso contencioso;
•Tanto o momento como os modos do cumprimento dependem, dentro de certos limites, de uma decisão discricionária da A.P., ou seja, de uma escolha livre entre duas ou mais soluções possíveis: se o acto anulado é irrevogável, a A.P. pode optar entre o cumprimento da sentença e a invocação de uma causa legítima de inexecução, pelo que, embora sujeito a controle jurisdicional, afasta, desde logo, qualquer automatismo do alegado efeito repristinatório;
•Apesar de existir um dever de executar a sentença, a A.P. pode invocar uma causa legítima de inexecução da sentença, ou seja, o dever de reposição da situação anterior pode cessar quando esteja em presença uma causa legítima de inexecução ou incumprimento da decisão, obrigando, no entanto, a A.P. a pagar uma indemnização compensatória ao titular do direito à execução;
•A principal lei do Contencioso angolano (Lei nº 2/94 de 14 de Janeiro) reúne normas equivalentes ao CPA (por exemplo, a definição de acto administrativo e poderes delegados), ETAF (como a divisão de competência entre os tribunais e o seu funcionamento), CPTA (entre outras, normas sobre alçadas, poderes de cognição do juiz e legitimidade processual), CPC (como sejam a tramitação pormenorizada do processo, actos de secretaria e custas) e Lei da Arbitragem Voluntária;
•Além desta lei, e embora esta contenha um título dedicado à suspensão da eficácia dos actos administrativos, existe uma lei autónoma relativa a esta matéria (Lei nº 8/96 de 19 de Abril – Lei de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo);
•A Lei de Suspensão da Eficácia do Acto Administrativo, apesar do nome, regula não apenas a suspensão da eficácia do acto administrativo, como também da decisão judicial;
•Se a Administração revogar o acto objecto de impugnação, o tribunal poderá pôr fim ao processo (independentemente dos efeitos já produzidos);
•Não existem critérios de competência material dos tribunais administrativos em vista da organização judiciária sui generis em vigor;
•O valor das alçadas é fixado em função do valor do salário mínimo da função pública;
• É proibida a arbitragem nas acções derivadas de contratos administrativos (com excepção dos contratos que revistam a natureza de contratos económicos internacionais);
•A forma de execução das sentenças varia consoante as entidades demandadas (Estado ou entidades particulares);
•Existe a possibilidade de execução de multas administrativas;
•É possível suspender a eficácia da decisão judicial, por seis meses, quando esta for susceptível de causar prejuízo grave para o Estado;
• Quaisquer dúvidas e omissões, na interpretação e aplicação das principais leis de contencioso administrativo, são resolvidas pela Assembleia Nacional ou pelo Conselho de Ministros, dependendo da lei em questão.


Assim sendo fazendo uma análise crítica quanto ao Contencioso Administrativo Angolano, verificamos que este sistema se assemelha em alguns aspectos basilares, ao Contencioso Administrativo Português. Mas tendo em conta algumas vicissitudes demonstradas, este possuí alguns problemas de efectivação das normas constantes tanto na Lei fundamental de 1992 como no DL nº 4ª/96 de 5 de Abril

Bibliografia
SILVA, Vasco Pereira da, O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009


Legislação Angolana:
- Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro
- Lei nº 17/90, de 20 Outubro
- Lei nº 12/91, de 6 de Maio
- Lei nº 2/94 de 14 de Janeiro
- Lei nº 8/96 de 19 de Abril
- Lei Constitucional da República de Angola
Legislação Portuguesa:
- Constituição da República Portuguesa
- Código do Procedimento Administrativo
- Código de Processo nos Tribunais Administrativos
- Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
- Lei da Arbitragem Voluntária
- Código de Processo Civil

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