quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A EVOLUÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NA BÉLGICA

Breve introdução

Como nota introdutória gostaria de explicar as razões que me levaram a escolher a Bélgica como país para o tema da evolução do contencioso administrativo. Nasci e vivi na Bélgica cerca de 20 anos, pelo que é um pais que me é pessoalmente caro. Cheguei a frequentar os dois primeiros anos do curso de direito da Universidade Livre de Bruxelas, onde já tive a ocasião de ouvir falar, de forma pouco detalhada (na cadeira de introdução ao Direito), do sistema administrativo belga e do seu Conselho de Estado. Para além do plano teórico, na minha experiência de vida na Bélgica, pude perceber que o “Conseil d’État” é uma instituição muito importante para a vida quotidiana dos cidadãos do Estado belga. Quase todos os dias se ouve falar das opiniões e das decisões do “Conseil d’Etat” nas notícias. Por exemplo, a recente proibição – estipulada nos regulamentos das escolas públicas belgas – do uso do véu islâmico na escola pelas alunas muçulmanas tem tido um grande impacto nos noticiários, sendo sempre requisitada de alguma forma a opinião do Conselho de Estado (que parece não se querer pronunciar sobre o assunto para não ter a responsabilidade de tomar uma decisão política tão crucial)

Alguns vídeos de notícias belgas acerca deste delicado problema que testemunham da importância do “Conseil d’État”, disponíveis no YouTube (em francês):

(1): http://www.youtube.com/watch?v=BhwBsSXNT5Y

(2): http://www.youtube.com/watch?v=ZIJTKsxlBs8&NR=1

A administração belga é uma administração complexa, por causa do sistema de coordenação entre o Estado federal e os vários níveis das entidades federadas (sendo estas as três regiões económicas e as três comunidades linguísticas). Os mais atentos às notícias internacionais saberão que a Bélgica tem atravessado uma crise política gravíssima, alguns comentadores chegando mesmo a falar do fim próximo do Estado belga. Há portanto necessidade de uma instituição muito competente para dirimir os conflitos entre os particulares e a administração.

Aconselho a todos a ver este vídeo muito interessante no YouTube que explica de forma clara, simples e muito divertida a estrutura complexa do Estado belga (em inglês):

http://www.youtube.com/watch?v=Ceg6NQKHd70

O Estado belga é para além disso vizinho do Estado francês, onde “tudo começou”, onde nasceram o direito administrativo e o contencioso administrativo como nós os conhecemos. É sempre interessante ver quais as influências – e qual a medida dessas influências – que um país vizinho pode ter sobre outro país.

Passemos então à analise da evolução do contencioso administrativo belga, começando com o nascimento da Bélgica (1830).

I. O nascimento da Bélgica e a Constituição belga

A Bélgica nasceu em Setembro de 1830 de uma revolução contra a Holanda, país ao qual as suas províncias tinham sido anexadas pela Conferencia de Viena de 1815. Antes de 1815, a Bélgica tinha estado anexada à França desde 1795. A Constituição belga foi estabelecida em 1831 pelo “Congrès national”, assembleia constituinte eleita para o efeito.

A rejeição do “Conseil d’État” francês e a confiança investida no poder judiciário para controlar a administração

Nesta altura, os belgas já tinham conhecido vários Conselho de Estado. Mas o Congresso nacional, ao criar os pilares do estado novo, não previu a criação de um Conselho de Estado. É que para os constituintes de 1831, a noção de Conselho de Estado estava associada à lembrança de períodos de opressão. Pois, sob o regime francês, o pais tinha conhecido o Conselho de Estado napoleónico. Depois, sob o regime holandês, o pais conheceu um outro Conselho de Estado concebido no mesmo espírito do que o francês. Aos olhos dos revolucionários belgas, o Conselho de Estado era então o símbolo da super potência de Guilherme Iº de Holanda.

Os constituintes depositaram antes, por razões históricas atinentes às províncias que formam a Bélgica, grande confiança no poder judiciário. O poder judiciário tinha por missão a protecção dos cidadãos contra o arbítrio administrativo (artigos 31.º e 159.º da Constituição belga). Os revolucionários belgas, apenas saídos de um período autoritário, tinham pois uma missão principal: proteger os cidadãos contra o arbítrio.

A falta sentida de um Conselho de Estado em razão das suas atribuições consultivas

Contudo, um Conselho de Estado fez rapidamente sentir a sua falta, principalmente em razão da sua função consultiva. Por exemplo, sob o período francês, o Conselho de Estado tinha atribuições consultivas relativamente à exploração das minas e para que a legislação mineira continuasse a ser aplicada, um Conselho das minas belga foi instituído em 1832. Será necessário um século para vir a ser criado um Conselho de estado belga, retomando as atribuições do Conselho das minas.

II. O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO “CONSEIL D’ETAT”

O processo de criação do Conselho de Estado, iniciando-se logo depois da independência do Estado belga e finalizando-se somente em 1946, teve uma história de mais de 100 anos. Esta história pode ser dividida em 3 fases:

Uma primeira fase, que pode ser qualificada de “fase de tentativa legislativa”, estende-se de 1832 a 1857. Esta fase caracteriza-se pela apresentação de 3 propostas e 2 projectos de leis. Tratava-se, nesta primeira fase, essencialmente de instaurar uma instituição consultiva tendo por objectivo uma melhor preparação das lei. Nenhum dos projectos foi realizado.

Uma segunda fase, que pode ser qualificada de “fase doutrinal”, estende-se de 1957 a 1911. Depois de 1857, o Parlamento e o Governo desinteressam-se da questão. Esta vai no entanto ser retomada pela doutrina. A dimensão contenciosa passa a ganhar grande importância depois da evolução, ao longo do século 19, do fenómeno de “automutilação” do poder judiciário (influência do pensamento jurídico francês).

Uma terceira fase, que pode ser qualificada de “fase doutrinal e legislativa decisiva”, estende-se de 1911 a 1946. Nesta fase, o debate torna-se agitado tanto no plano parlamentar como no plano doutrinal. Defensores e contestadores de uma função jurisdicional a atribuir à instituição afrontam-se, até que os excessos dos regimes autoritários façam tomar consciência da necessidade de instituir uma autoridade com a função de manter o executivo nos limites que lhe são impostos pela lei.

Analisemos então um pouco melhor cada uma destas fases.

A fase da tentativa legislativa

Foram de facto as atribuições consultivas do Conselho de Estado na feição das leis que fizeram logo falta a alguns belgas. Foram várias as tentativas legislativas de instituir um Conselho de estado, mas sem sucesso. Renunciando à via legislativa, o governo começou a criar Comités consultivos no seio dos ministérios. Um deles foi criado em 1912 no ministério da justiça e foi chamado “Conseil de législation”.

A fase doutrinal

O fenómeno da “automutilação” do poder judiciário: uma influência do pensamento jurídico francês

Se ao início da independência da Bélgica o poder judiciário não teve problemas em condenar a administração pública, nos finais do século XIX, o controlo da ordem judiciária sobre a administração veio a ser considerada cada vez menos aceitável. Uma evolução ocorreu no pensamento jurídico, influenciada por uma concepção da separação dos poderes ilustrada pela constituição francesa de 1791 e de resto defendida por alguns autores, nomeadamente por Henrion de Pansey. Os juízes começaram a estimar que não podiam “perturbar as operações dos corpos administrativos” e que tinham de se declarar incompetentes quando a Administração pública, agindo nessa qualidade, estivesse em juízo perante eles.

A falta de uma jurisdição administrativa com competência geral, independente e imparcial e a desprotecção dos particulares

Esta concepção, que tinha como principal função a realização da partilha de competências entre a ordem judiciária e a jurisdição administrativa, tinha-se implantado com sucesso em França. Pois em França começou a existir uma dissociação entre as funções da administração activa e as funções da administração dita “contenciosa”. O problema é que na Bélgica não existia ainda nenhuma jurisdição administrativa com competência geral e a dita teoria fazia com que os particulares que fossem lesados por um acto da Administração ficassem sem meios de defesa perante uma autoridade independente e imparcial. Pois não existindo nenhuma jurisdição administrativa com competência geral, o que existia eram dezenas de competências específicas, nomeadamente em matéria de taxas comunais, de eleições comunais, de segurança social, etc. que eram atribuídas a diversas jurisdições, o mais das vezes compostas segundo o principio do “administrador juiz” e que em regra não ofereciam garantias suficientes, nem no plano da imparcialidade, nem no plano do processo, nem no da formação jurídica.

O aumento simultâneo dos poderes da Administração

Nesta mesma altura, os poderes da Administração pública começavam a extravasar a suas atribuições tradicionais, levando as suas acções em diversas áreas da vida económica e social e aumentado por isso os riscos de prejudicar os particulares. Esta situação levou o antigo primeiro ministro e ministro do Estado belga, A. Beernaert, a declarar à Assembleia no dia 17 de Janeiro de 1906 que, naquela altura, na Bélgica, “quando a Administração falou, tudo está dito”.

A fase doutrinal e legislativa decisiva

As duas soluções propostas pela doutrina

A consciência jurídica despertou e vários estudos sobre o controlo jurisdicional da administração foram levados a cabo entre 1910 e 1920. A doutrina então criada recomendava duas soluções alternativas:

Ou se criava um tribunal do contencioso administrativo (“cour du contentieux administratif”), inspirado na secção de administração do Conselho de Estado francês – solução administrativa;

Ou se operava a reversão da jurisprudência dos tribunais, alargando – como de resto aconteceu no Reino Unido – a competência do poder judiciário ao contencioso administrativo – solução judiciária.

A reacção dos tribunais: o acórdão “La Flandria” e a acção em indemnização por prejuízo causado por uma entidade pública

A jurisprudência dos tribunais foi portanto alvo de muitas críticas. Tendo em conta essas críticas, os tribunais reagiram e no acórdão de 5 de Novembro de 1920 conhecido por o acórdão “La Flandria”, o tribunal supremo do pais, a “Cour de Cassation”, afirmou a competência dos tribunais para conhecer da acção em indemnização por prejuízo causado por uma entidade pública:

Attendu que la Constitution a déféré aux cours et tribunaux la connaissance exclusive des “contestations qui ont pour objet des droits civils” (art.92);

Attendu que, par ces termes, elle a mis sous la protection du pouvoir judiciaire tous les droits civils, c’est-à-dire tous les droits privés consacrés et organisés par le Code civil et les lois qui le complètent, et confié aux cours et tribunaux la mission de réparer les atteintes portés à ces droits;

Qu’en vue de réaliser cette protection, la Constitution n’a égard ni à la qualité des parties contendantes, ni à la nature du droit lésé;

Qu’en conséquence, dès lors qu’une personne qui se dit titulaire d’un droit civil allègue qu’une atteinte a été portée à ce droit et qu’elle demande la réparation du préjudice qu’elle a éprouvé, le pouvoir judiciaire peut et doit connaître de la contestation et il est qualifié pour ordonner, le cas échéant, la réparation du préjudice, même au cas où l’auteur prétendu de la lésion serait l’Etat, une commune, ou quelque autre personne de droit public, comme aussi au cas où la lésion serait causée par un acte illicite d’administration publique; “

Um passo importante foi assim dado e desde 1920 o contencioso da responsabilidade da administração pública evoluiu no sentido de uma crescente ousadia dos tribunais relativamente à administração.

O acórdão La Flandria pareceu resolver, ao menos em parte, o problema do controlo jurisdicional da Administração. Assim a urgência de uma iniciativa desapareceu e a questão pareceu poder ser resolvida pelo legislador ordinário. Não houve portanto nesta altura nenhuma revisão constitucional.

Os limites do acórdão “La Flandria”

No entanto, a jurisprudência nascida do acórdão “La Flandria” não ia demorar muito a mostrar os seus limites. Ainda havia na consciência dos tempos uma aversão à ideia de “jurisdição administrativa”. Os tribunais não se queriam pronunciar sobre os mecanismos internos da Administração e a própria decisão administrativa ficava muitas vezes fora do alcance do seu alcance.

Então apenas existiam duas vias jurídicas para se opor à acção ilícita da administração: em primeiro lugar, a aplicação de um acto administrativo podia ser recusada pelos tribunais com base no artigo 159.º da Constituição se o acto fosse ilegal; em segundo lugar, os danos causados por tais actos podiam ser indemnizados por aplicação das regras da responsabilidade civil. Em ambas os casos o acto administrativo subsistia. E a intervenção do Estado em todas as áreas, com os riscos associados de ilegalidades, arbítrios e prejuízos para os particulares, continuava a crescer, a um ritmo mais acelerado ainda a partir da primeira guerra mundial (1914 – 1918).

O discurso de Louis Wodon e o caminho aberto para a criação do “Conseil d’État”

Uma proposta de lei feita no dia 15 de Maio de 1930 atinente à criação de uma “Cour du contentieux administratif” suscitou de novo o debate acerca da instituição de um contencioso administrativo e esteve na origem de um importante movimento doutrinal.

No dia 24 de Março de 1937, o governo apresentou um projecto de lei que tinha por objecto a criação de um Conselho de Estado. O projecto era tímido, atribuindo principalmente à instituição um poder apenas consultivo.

O projecto estava em discussão no Parlamento quando Louis Wodon, um homem muito prestigiado que foi chef de gabinete do rei Albert Iº, fez, no dia 5 de Dezembro de 1938, um discurso intitulado “Du recours pour excès de pouvoir devant la Constitution belge” (tradução: “Do recurso por excesso de poder perante a Constituição belga”).

O discurso de Wodon foi levado ao conhecimento dos parlamentares que acabaram por orientar o projecto no sentido da criação de uma jurisdição administrativa com poderes gerais de anulação de todos os actos administrativos. A fisionomia do “Conseil d’Etat” estava, no essencial, fixada.

A guerra interrompeu os trabalhos parlamentares e quando estes foram retomados, depois do choque vivido, já ninguém contestava a necessidade da organização de um contencioso administrativo.

A lei que instituiu o “Conseil d’Etat” data de 23 de Dezembro de 1946.

A consagração constitucional

Apesar do Conselho de Estado ter iniciado a sua actividade em 1948 e ter rapidamente vindo a ser considerado como uma das instituições mais importantes do Estado belga, só foi consagrado na constituição belga em 1993 (artigos 160.º e 161.º da constituição).

O fenómeno da europeização

Também o contencioso administrativo belga tem sido fortemente influenciado pelo fenómeno de europeização. Por exemplo, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem teve uma influencia considerável quanto à organização do recurso jurisdicional perante o Conselho de Estado. O tribunal de Estrasburgo defende acerrimamente a aplicação do artigo 6.º Nº1 da Convenção para a protecção dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, impondo assim o respeito pelo direito a um tribunal independente e imparcial (por exemplo, o seu acórdão “Procola contra Luxemburgo”, de 28 de Setembro de 1995, que censurou o Conselho de Estado luxemburguês por este não apresentar garantias suficientes de independência e imparcialidade). Também o trabalho das organizações internacionais, nomeadamente as recomendações do Comité de ministros do Conselho da Europa, contribuíram ao desenvolvimento das vias de controlo jurisdicional da administração.

III. As funções do Conselho de Estado

A instituição mudou desde então mas permaneceram os seus traços fundamentais. O numero de funcionários do Conselho de Estado cresceu mas as suas funções permaneceram no essencial as mesmas: o contencioso da anulação continua a ser a principal actividade jurisdicional do Conseil d’Etat.

Com base nas funções que lhe foram atribuídas, o Conselho de Estado belga está dividido em duas secções: a secção de legislação e a secção do contencioso administrativo.

A secção de legislação

A secção de legislação do Conselho de Estado consiste num órgão consultivo. Tem por função esclarecer e assistir o legislador, o governo federal e os órgãos das entidades federadas, no exercício da função normativa. A competência desta secção é de índole essencialmente consultiva e preparatória; pois não lhe cabe nenhum poder de resolução de litígios. A função exercida pela secção de legislação é muito importante tanto do ponto de vista da “legística” – o legislador quis melhorar a técnica e a qualidade da legislação – como do ponto de vista da prevenção de conflitos de competência entre as instituições federais e as instituições federadas.

A secção do contencioso administrativo

Foram atribuídos à secção do contencioso administrativo principalmente quatro poderes jurisdicionais. A secção do contencioso administrativo:

- decide dos recursos de anulação de actos administrativos (recursos ditos “por excesso de poder”);

- conhece dos recursos em anulação de decisões contenciosas administrativas (recursos ditos “em cassação”);

- decide em segunda instancia de certas decisões tomadas em aplicação da lei eleitoral comunal e da lei sobre a assistência pública (recursos ditos “de plena jurisdição”);

- decide dos pedidos de indemnização por dano excepcional causado por uma autoridade administrativa.

O contencioso de anulação de actos administrativos é de longe a actividade mais importante da secção administrativa, tanto pelo número de litígios (cerca de 8000 por ano) quanto pelo controlo que implica sobre a actividade da administração.

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BILBIOGRAFIA:

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LEROY, M., Contentieux administratif, Brussels, Bruylant, 2004.

MULLER, F., "Henri Velge, l'artisan du Conseil d'État belge (1911-1946)", Revue belge d'histoire contemporaine, 2007, 143-174.

LEWALLE, P., Contentieux administratif, 3ème édition, Larcier, 2008.

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Benedita Sampaio Nunes

Nº 140107508


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