sábado, 6 de novembro de 2010

Evolução do estranho caso da legitimidade processual

Considerações introdutórias

A presente exposição tem por objecto uma breve incursão sobre o pressuposto processual da legitimidade e, a sua diferente configuração no actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”).

A reforma sofrida pelo contencioso administrativo no ano de 2004 visou, essencialmente, a adopção de um modelo de justiça administrativa mais conforme com o modelo constitucional, e mais conforme, nomeadamente, sob o ponto de vista da tutela jurisdicional efectiva. O contencioso administrativo português era, tradicionalmente, um contencioso altamente objectivista de mero controlo da legalidade. Com a reforma, reforçou-se a ideia de que o processo administrativo é cada vez mais um processo de partes acentuando-se, deste modo, o seu pendor subjectivista. A legitimidade processual afigura-se-nos então, como o pressuposto processual através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal.

A “legitimidade” do acto enquanto “ente órfão” no processo administrativo

A título de enquadramento impõe-se a alusão à lógica clássica, nascida do modelo francês e perseverada nos “traumas da infância difícil”, em que o contencioso era um contencioso do tipo objectivo destinando-se, consequentemente, à mera verificação da legalidade de uma actuação administrativa, da mesma forma como na “idade média se abria processo a um cadáver”. Com isto pretende-se significar que no quadro deste contencioso não havia partes, o que estava em causa era um juízo do tribunal sobre uma realidade morta, o acto administrativo. “Quem”, ou melhor dizendo, “o que” (uma vez que por mais que a nossa imaginação ficcione um acto não poderá ser considerado um sujeito) estava submetido aos desígnios do juiz era o acto e não a entidade que o tinha praticado. A administração não era julgada, era única e exclusivamente uma autoridade recorrida. O acto administrativo podia assim ser configurado como um ente jurídico “órfão”, que aparecia em juízo sem qualquer conexão ou responsabilização dos seus progenitores.

O particular como sujeito renegado no processo administrativo

Por outro lado, também o estatuto de parte no processo era negado ao particular que não possuía direitos face à administração. Este não estava em juízo para proteger um qualquer seu direito lesado por uma actuação administrativa ilegal, actuava tão só como um procurador do direito, auxiliando de forma altruísta o juiz na procura da verdade material e na repressão dessa infracção.

Em suma, tanto o particular como a administração não eram considerados partes, nem do ponto de vista processual, nem do ponto de vista substantivo (pois não poderia existir entre eles uma relação jurídica material). O que estava sempre em juízo era uma actuação administrativa, analisada independentemente do seu autor e, o particular entrava nesta acção não para defender os seus direitos, que não os tinha, mas para colaborar com o tribunal na defesa da legalidade e do interesse público. Esta noção de contencioso era ainda fruto do “pecado original de promiscuidade entre a Administração e a justiça”, uma vez que, o efectivo processo de partes só existe quando o juiz desempenha o papel de um terceiro imparcial, em face de dois interesses contrários que lhe são apresentados. Só com a Constituição da República Portuguesa (“CRP”) de 1976 nasce um contencioso plenamente jurisdicionalizado.

Actualmente, o código de processo consagra, expressamente, tanto a regra de que particulares e administração são partes no processo administrativo, como também o princípio da igualdade efectiva da sua participação processual (artigo 6.º)

Os direitos subjectivos enquanto “enteados” de uma legitimidade “madrasta”

Tradicionalmente, era a legitimidade que constituía o “filtro” de acesso ao juiz, e esta era determinada em razão do interesse directo, pessoal e legítimo dos particulares no desaparecimento do acto administrativo da ordem jurídica. O interesse enquanto condição de legitimidade surge, pois, como o sucedâneo de uma posição jurídica substantiva do particular, posição essa que se pretendia negar. Havia um verdadeiro contra-senso na concepção clássica, uma vez que “se fechava a porta aos direitos subjectivos mas abria-se uma janela.” Mais, tirando o carácter directo do interesse, os requisitos de pessoal e legítimo não se referem apenas à relação processual, mas apontam sobretudo para a relação jurídica material, o que enfatiza ainda mais o paradoxo existente na concepção do contencioso administrativo objectivo. Pois se, por um lado se recusava que o particular fizesse valer um direito seu em juízo falando-se apenas num direito à legalidade, concebido em termos objectivos, por outro lado os requisitos que a jurisprudência e a doutrina exigiam para a determinação do interesse processual apontavam para a substancialização desse mesmo direito.

Repare-se na perplexidade desta solução, era necessário a existência de um direito subjectivo para se poder recorrer a juízo, mas esse mesmo direito subjectivo não podia ser defendido pelo particular em tribunal porque o contencioso objectivo entendia que ele não existia, ou seja, o contencioso só “utilizava” os direitos subjectivos para fazer o “trabalho” de selecção dos actos que iam a juízo, mas quando chegava à altura de os “premiar” com a defesa por parte dos seus titulares renegava-os.

A “Transformação” de pessoas em sujeitos-parte no processo administrativo

O código de processo vem, embora tardiamente, colocar um ponto final neste contra-senso e estabelece um regime jurídico diametralmente oposto ao existente. No novo regime introduzido com a reforma determina-se que a legitimidade decorre da alegação da posição de parte na relação material controvertida. O critério é agora o da atribuição da legitimidade, na relação processual, em razão da posição dos sujeitos e da alegação de direitos e deveres recíprocos na relação jurídica substantiva. Há uma visível preocupação em assegurar a ligação entre a relação material substantiva e a relação processual. Nos termos do n.º1 do 9.º e da alínea a) do n.º 1 do 55º do CPTA exige-se para a definição da legitimidade processual que o interesse do autor seja "pessoal", ou seja, impugnante é considerado parte legítima porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual se move o processo e com o qual pode retirar, para si próprio, uma utilidade concreta na anulação do acto impugnado pese embora o mesmo interesse possa ser comum a um conjunto de pessoas ou a pessoas diferenciadas. Quanto ao carácter "legítimo" do interesse foi abandonado.

Inovações no âmbito da legitimidade processual introduzidas pelo CPTA:

1) No que respeita à legitimidade activa o legislador estabeleceu no 9º um princípio geral de legitimidade activa superando desde logo, a concepção tradicional que assentava num mero tratamento fragmentário desta matéria por referência aos diversos meios processuais especialmente previstos. Por outro lado o legislador adoptou a técnica da lei processual comum, concentrando num único preceito os dois modelos típicos de legitimidade directa:

· a pertinência da relação jurídica administrativa para as acções de função subjectiva

· titularidade de um interesse difuso no que se refere à acção popular

Assim sendo, é considerado como parte legítima o autor, sempre que alegue ser parte na relação material controvertida, que o mesmo é dizer que basta a alegação plausível da titularidade de direitos subjectivos ou de posições substantivas de vantagem de que alegadamente é titular na relação jurídica administrativa, uma vez que saber se ele é ou não titular do direito é algo que se vai saber já no próprio decorrer do processo.

Efectivamente é com a intervenção dos particulares, enquanto sujeitos de direitos individualmente considerados, que o contencioso administrativo assume a sua função predominantemente subjectiva, a protecção dos direitos dos particulares. No entanto a função subjectiva não preenche por completo os propósitos do contencioso actual, existe a par e passo uma não menos importante função objectiva de tutela da legalidade e do interesse público. Neste sentido, consideram-se ainda sujeitos activos do Contencioso Administrativo o actor público (n.º3 do artigo 52.º CRP) e o actor popular nos termos do n.º2 do artigo 9.º

2) Não obstante a consagração de um princípio geral de legitimidade activa o CPTA mantém a previsão de regras específicas de legitimidade para a acção administrativa especial, e que se reportam tanto à acção de impugnação do acto nos temos do artigo 55.º como à acção para condenação à prática de acto devido como estabelece o artigo 68.º. No que se refere à acção impugnatória pode dizer-se que a norma do 55.º não contem alterações significativas relativamente aos critérios de legitimação que constavam já das disposições dispersas vigentes antes do código, o legislador acolhendo também os contributos jurisprudenciais limitou-se a sistematizar todos os tipos de interesse que poderão constituir objecto da acção de impugnação (interesse individual, público, difuso e colectivo). O n.º 2 do citado preceito prevê ainda a acção popular correctiva que poderá ser exercida por qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, para a impugnação de deliberações dos órgãos autárquicos na circunscrição em que se encontre recenseado. A legitimidade radica assim, unicamente, na qualidade de cidadão. Quanto ao artigo 68.º, este exclui qualquer referência aos órgãos administrativos e aos presidentes dos órgãos colegiais, inviabilizando a eclosão de litígios relativos ao contencioso das omissões no seio de uma mesma pessoa colectiva pública. Por outro lado, o mesmo preceito impõe uma importante restrição à iniciativa processual do Ministério Público, limitando-a aos casos em que o dever de praticar o acto resulte directamente da lei e, cumulativamente, esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos interesses difusos a que se refere o n.º2 do 9.º

3) É ainda de salientar as novas regras de determinação da legitimidade activa nos pedidos relativos a contratos, constatando-se um assinalável alargamento do âmbito da legitimidade a quem não seja parte na relação contratual (alíneas b), c), d)e f)do n.º1 e alíneas b), c), d)e e)do n.º2 do artigo 40.º. Anteriormente, de acordo com o previsto no 825.º do código administrativo as acções sobre contratos só poderiam ser propostas pelas entidades contratantes. Ora, o n.º1 do artigo 40º do actual código de processo vem, precisamente, cobrir o défice de protecção de terceiros no quadro do contencioso pré-contratual, permitindo que o pedido relativo à validade dos contratos possa ser deduzido por sujeitos que não sejam partes na relação jurídica. Adiante-se também que o alargamento do âmbito da legitimidade activa no domínio do contencioso dos contratos atinge não apenas acções constitutivas, mas também as acções condenatórias relativas à execução das prestações contratuais conforme resulta do n.º2 do artigo 40.º

4) No que toca à legitimidade passiva o legislador tomou a feliz opção de tratar a administração nos termos do princípio da igualdade das partes, e não apenas como uma mera autoridade recorrida. Adoptou-se também neste ponto o critério da relação material controvertida, considerando-se como partes não só as entidades públicas mas também os “indivíduos ou as pessoas colectivas privadas , sujeitos ás obrigações e deveres simétricos dos direitos subjectivos alegados pelo autor” (artigo 10.º n.º1). A principal novidade a este respeito traduz-se na possibilidade de identificar, como entidade demandada, em todo o tipo de processos intentados contra entidades públicas (incluindo as acções de impugnação de actos administrativos) a “pessoa colectiva de direito público, ou no caso do Estado, o ministério a cujos os órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos” como prescreve o n.º2 do artigo 10.º

É por todos sabido que tradicionalmente não era esta a solução, adoptada uma vez que no contencioso de anulação funcionava a regra da atribuição da personalidade e capacidade judiciárias aos órgãos administrativos que tivessem praticado o acto impugnado. Consequentemente a competência do tribunal era determinada em função do autor do acto (artigo 7.º do ETAF) e a este, enquanto órgão administrativo, eram concedidos os poderes processuais correspondentes à posição de sujeito passivo na relação processual (artigo 26.º LPTA)

Esta inovação a que assistimos no regime da legitimidade passiva foi fundamentada na exposição de motivos da proposta de lei n.º 92/VII, que originou o novo CPTA como tendo por base “uma razão de natureza teórica e duas razões de ordem prática”. Quanto ao motivo teórico sustenta-se que ocorreu uma alteração quanto à denominação do meio processual dirigido à impugnação de actos administrativos que passou também a ser caracterizada como uma forma de acção. No que diz respeito aos motivos práticos temos, que por um lado a indicação, como entidade demandada, do departamento ministerial ou da pessoa colectiva pública a que pertence o órgão administrativo que praticou o acto impugnado ou a quem é imputável a omissão, poderá adequar-se melhor à nova faculdade processual de cumulação de pedidos, uma vez que o CPTA permite actualmente a cumulação de todos os pedidos que respeitem à mesma relação material controvertida. Por outro lado permite superar as dificuldades por vezes sentidas pelo recorrente de identificar com precisão o autor do acto recorrido.

Em bom rigor, o certo é que as inovações se prendem sobretudo por razoes de economia processual dada a necessidade de preservar a regularidade da instância em relação a casos de erro na identificação do autor do acto impugnado, que frequentemente conduziam ao convite judicial para regularização da instância ou até mesmo à própria rejeição do recurso contencioso. Nestes termos, caso o autor tenha indicado como parte demandada um órgão de uma pessoa colectiva pública ou ministério, a acção considerar-se-á proposta contra essa pessoa ou ministério, sem possibilidade de indeferimento liminar ou necessidade de qualquer correcção da petição (n.º 4 do artigo 10.º).

5) Com a disposição do n.º 7 do artigo 10.º deixam de existir dúvidas que as pessoas jurídicas privadas que mantenham uma específica relação com um regime de direito administrativo podem hoje ser demandadas individualmente. Porém o sentido do n.º7 ultrapassa este esclarecimento, e visa sobretudo a legitimação plural, estabelecendo em regra a admissibilidade de litisconsórcio voluntário ou da pluralidade subsidiária sempre que a relação jurídica controvertida respeite a entidades públicas e privadas. Não existia no regime antigo nenhuma norma com tamanha latitude, a alínea d) do n.º1 do 51.º do ETAF de 1984 permitia apenas a impugnação de actos praticados pelos concessionários no exercício de poderes de autoridade e alínea h) do mesmo número admitia que as acções de responsabilidade civil, incluindo acções de regresso, pudessem ser instauradas contra titulares de órgãos ou agentes administrativos, encontrando-se circunscrita a tais situações a possibilidade de entidades privadas figurarem como sujeitos passivos da relação processual .

6) Temos estado a analisar a questão da legitimidade na perspectiva de uma relação entre dois sujeitos, com interesses contraditórios, ou seja na perspectiva de uma relação bilateral. Todavia, há que ter em conta que vivemos numa sociedade cada vez mais complexa e onde existem em número cada vez maior relações multilaterais. Nesta linha da raciocínio, para que possa haver coincidência entre a relação material e a processual tem de ser permitido o chamamento a juízo de todos os titulares da relação material controvertida. O legislador não menosprezou esta conjuntura e previu a possibilidade da ocorrência de situações de pluralidade de partes, recorrendo para isso, às figuras gerais do litisconsórcio e da coligação previstas no artigo 12.º O artigo 48.º regula ainda, numa lógica de evidente preocupação com a “abertura do processo”, os chamados processos de massa, que são processos que envolvem uma multiplicidade de sujeitos, mas que dizem respeito à mesma relação jurídica material, e em que estão em causa idênticos fundamentos de facto e de direito

Considerações finais

A temática da legitimidade processual está intimamente ligada com a concretização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, tendo sido por isso de extrema importância a sua abordagem. Da análise realizada é possível concluir que houve uma evidente expansão da legitimidade activa, consubstanciando uma mais abrangente protecção jurídica de terceiros lesados por actuações da administração que, note-se, de acordo com os comandos constitucionais é a função primordial e a razão de ser da justiça administrativa. Repare-se que tradicionalmente os particulares mais não eram do que meros objectos ao serviço do poder soberano e os actos administrativos ocupavam, ironicamente, a posição dos sujeitos no processo, actualmente assistimos a uma inversão de papeis que corresponde, precisamente, ao mais elementar raciocínio jurídico: as pessoas são os sujeitos do processo e os actos administrativos o objecto do processo.

No tocante à legitimidade passiva o legislador já não foi tão arrojado, pelo contrário, “jogou à defesa” e optou por manter a solução “clássica”, de preferência pela pessoa colectiva como sujeito processual, resguardou-se no entanto, na perspectiva de reduzir ao mínimo as objecções formais que possam colocar-se à apreciação de mérito da causa ou de que de algum modo possam dificultar o acesso efectivo à justiça administrativa.

Por último, mas não por isso menos importante, é de se aplaudir o facto de o legislador ter tido uma “mentalidade aberta” à complexidade da sociedade actual e, não se ter olvidado de prever as relações jurídicas multilaterais que ocupam hoje uma posição central no contencioso.

Referências bibliográficas

· ALMEIDA, Mário Aroso de,
"O novo regime do processo nos tribunais administrativos", Almedina, 2003

· AMARAL, Diogo Freitas do/ ALMEIDA, Mário Aroso de,
"Grandes Linhas da reforma do Contencioso Administrativo", Almedina, 2002

· CADILHA, Carlos, 
"Legitimidade Processual", Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 34

· SILVA, Vasco Pereira da, “O contencioso administrativo no divã da psicanálise”, Almedina, 2009

Bruna de Sousa

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